“Dias perfeitos” e a beleza do ordinário

As mudanças de ângulo ao filmar os rituais de Hirayama sugerem um apreço pelo instante, pelo miúdo, por esses detalhes que não são suficientes para revolucionar a vida, mas que refletem sobre ela; ou, como escreveu Matilde Campilho sobre a arte, que “não salva o mundo, mas salva o minuto”.

Por Cauana Mestre

Hirayama acorda com o barulho da vizinha varrendo a calçada. Então se levanta, dobra e guarda o futon, escova os dentes, apara o bigode, molha as plantas, veste o uniforme, pega o relógio e as chaves, seleciona uma bebida em uma máquina de bebidas ao lado do seu sobrado, escolhe uma entre algumas fitas-cassete e dirige até o trabalho — um conjunto de banheiros públicos de Tóquio, que ele é responsável por zelar. Posso descrever cuidadosamente seu ritual, quase certa de que errarei pouca coisa, tamanha intimidade com a rotina de Hirayama criada ao longo do filme.

O diretor Wim Wenders se serve de um olhar impecável para fazer pequenas, mas significativas mudanças de câmera, mostrando ângulos ligeiramente diferentes de um cotidiano repetitivo. Eu, que tenho amor pelo novo, em alguns momentos senti pena da mesmice na vida de Hirayama, mas em outros o invejei e desejei conseguir acessar o ordinário da vida como ele.  A beleza do personagem – que é o mesmo que dizer da beleza do filme –, reside em uma imensa delicadeza em cada gesto interpretado por Koji Yakusho. Fiquei fascinada pelo seu hábito de carregar uma câmera analógica e fotografar as copas das árvores. Mais fascinada ainda pelo critério que usa para escolher as fotos depois de revelá-las: um critério sem o menor sentido para nós, espectadores. Acredito, aliás, que o critério não tem sentido nem mesmo para o ator, o diretor e o roteirista, permanecendo em posse exclusiva do personagem. Esse detalhe tão bonito me fez pensar nas diferentes formas de solidão com a qual nos encontramos nessa vida. Me fez pensar na solidão à qual somos submetidos dentro da cultura das grandes cidades, mas também em outra, muito mais singular, que só se encontra em uma dimensão ética, quando se pode prescindir dos imperativos alheios e escolher o próprio sentido da vida – para o bem e para o mal.

Dias perfeitos é um filme que alcança muitas coisas: o massacre da rotina e da produtividade na vida capitalista, as distâncias familiares fundadas em não-ditos sufocantes, a solidão e a assepsia segregativa de uma cidade como Tóquio e outras tantas camadas. Mas sua marca mais profunda, para mim, é a expressão da decisão cotidiana de encontrar fragmentos de humor e beleza na cidade, na rotina, na vida em si; uma aposta irremediável na possibilidade de encantamento que reside no ordinário. As mudanças de ângulo ao filmar os rituais de Hirayama sugerem um apreço pelo instante, pelo miúdo, por esses detalhes que não são suficientes para revolucionar a vida, mas que refletem sobre ela; ou, como escreveu Matilde Campilho sobre a arte, que “não salva o mundo, mas salva o minuto”.

Os jovens que aparecem no filme evidenciam um pouco do desajuste da geração Z em sua relação com o tempo. Seja porque é difícil manter um trabalho que se repete, porque não é possível dar tempo de elaboração para os impasses familiares ou porque é difícil abandonar as telas para olhar para o outro, o contraste entre a quietude de Hirayama e a ansiedade da juventude nos diz muitas coisas sobre as diferenças geracionais e sobre alguns dos sintomas mais contemporâneos do laço social.

Em entrevista à Slant Magazine, Wenders disse que Dias perfeitos é o mais próximo que ele já chegou de uma declaração sobre a paz. A rotina de Hirayama – entrecortada por frações em sua relação com a natureza, a música e a literatura – é a expressão de um contentamento que é subestimado em nossos tempos, uma certa alegria da suficiência (ou a difícil arte de nos contentarmos com aquilo que temos).

Em 1916, terceiro ano da Primeira Guerra Mundial, Freud escreveu A transitoriedade. Nesse texto, ele fala de um amigo que problematizava a admiração das coisas bonitas porque todas elas, em algum momento, acabariam. Freud argumenta, decidido: “a transitoriedade do belo não implica sua desvalorização. Pelo contrário, significa maior valorização!”. Freud, que sempre se mostrou avesso a otimismos vazios, aposta radicalmente na capacidade do olhar humano, que seria capaz de verificar que nossa “elevada estima dos bens culturais não sofre com a descoberta de sua precariedade” e que por isso seria possível reconstruir tudo o que a guerra destruiu “e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes”. É isso que Wenders faz em Dias perfeitos: ele mostra que qualquer coisa, por menor e mais banal que seja, pode se tornar poderosa com a dimensão do olhar. Acho que Hirayama, se pudesse ler as palavras de Freud, olharia para as árvores e, em silêncio, sorriria com elas.


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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.

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